Novos museus, Jogos Olímpicos, concursos e modificação da legislação: a novela da revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro vai ganhando novos capítulos. São esperados investimentos vultosos para os próximos três anos, motivados por incentivos fiscais e a venda de potencial construtivo adicional na bolsa de valores. O Rio vai ao pregão.
Para chegar à sede da Secretaria Especial da Copa do Mundo e Rio 2016 (Serio) percorre-se um extenso e escuro corredor no último andar de um dos edifícios da Cidade Administrativa, a sede da prefeitura carioca. Ao lado do retrato do prefeito Eduardo Paes, na sala de reuniões da secretaria, há um mapa do Plano Estratégico do Rio de Janeiro, no qual está assinalada uma série de eventos esportivos que gradativamente prometem atrair público, mídia e investimentos governamentais e privados para a cidade: os Jogos Mundiais Militares em 2011, a Copa das Confederações em 2013, aCopa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016.
Sucessora do órgão municipal que atuou no planejamento urbano dos Jogos Pan-Americanos de 2007, a Serio tem como objetivo assessorar a prefeitura na efetivação dos compromissos de infraestrutura, meio ambiente e transporte metropolitano firmados com o Comitê Olímpico Internacional (COI), através da Candidatura Rio 2016. Metas, aliás, segundo informa a secretaria, já alinhadas com os preparativos da cidade para abrigar jogos da Copa.
À frente da Serio está o secretário Ruy Cezar Miranda Reis, que tem percorrido o mundo proferindo palestras sobre a vitoriosa candidatura olímpica, de cuja elaboração foi coordenador, assim como sobre o que qualifica de bem-sucedida edição do Pan, no Rio de Janeiro. Não houve, afinal, casos notórios de violência, as delegações foram mantidas em segurança e as competições transcorreram pontualmente.
São quatro as zonas conceituais delimitadas na foto de satélite que estampa o Plano Estratégico: a região sul está inserida no que se denomina Zona de Ocupação Controlada (capacidade limitada de adensamento); a Barra da Tijuca, na Zona de Ocupação Condicionada (crescimento condicionado ao implemento de infraestrutura); grande parte da região norte, na Zona de Ocupação Incentivada (recomendável adensar, pois já existe a necessidade de investir em infraestrutura); e a maioria da região oeste, na Zona de Ocupação Assistida (desenvolvimento prioritário).
E o porto?
Nessa leitura, a zona portuária aparece como território híbrido, no convívio da Zona de Ocupação Incentivada com a de Ocupação Controlada. Mas ela possui potencial para crescer, ser adensada, embora com vocações distintas ao longo do seu tecido urbano. Essa indefinição parece promissora, mas não trouxe benefícios nas últimas décadas, tal o processo de degradação que a área amarga desde os anos 1980. O porto foi sendo abandonado; afora focos pontuais de resistência, minguaram os investimentos no local.
A bandeira a favor da restauração começou a ser empunhada com empenho no início de 2001, quando o Instituto Pereira Passos (IPP), uma autarquia vinculada à prefeitura do Rio de Janeiro, lançou o Plano de Revitalização e Recuperação da Zona Portuária. Alfredo Sirkis, então secretário municipal de Urbanismo e presidente do IPP, foi o responsável pela elaboração do projeto, cuja concepção se estendeu até 2003. Foi casualmente que, em 1992, Sirkis, atual vereador carioca pelo Partido Verde, interessou-se pelo tema. O assunto estava na ordem do dia, com Barcelona sediando os Jogos Olímpicos e ostentando perante os turistas seu porto revitalizado, quando Sirkis atendeu ao convite da prefeitura carioca para representar a cidade em um seminário realizado em Veneza. Dos projetos que viu, impressionou-se com o da intervenção no porto de Roterdã, na Holanda, em virtude do caráter inclusivo.
Quase dez anos depois, em dezembro de 2001, o projeto do IPP, ainda em elaboração, foi tema de grande exposição realizada no Centro de Arquitetura e Urbanismo (CAU). Denominada Porto do Rio, a mostra era a oportunidade que os cariocas esperavam para conhecer na íntegra o plano de recuperação que estava sendo idealizado para a sua zona portuária, opinou a diretora do centro expositivo do CAU, Ana Borelli, esposa de Sirkis. Assim foi feito, e entre os projetos internacionais exibidos figuravam ideias utópicas e concretas, em desenvolvimento.
Eram oito as propostas, assinadas por Índio da Costa eEduardo Villar (recuperação dos armazéns e construção de edifício para cultura e lazer no píer), Jorge Mario Jáuregui (o “não lugar” entre a praça Mauá e o bairro da Saúde), Ronaldo Brilhante (urbanismo includente), Ronaldo Saraiva (um “choque arquitetônico” no píer, incluindo a estufa de mata atlântica), Secretaria Municipal de Habitação (restauração com vistas à criação de novas moradias), Clarissa Moreira(recuperação e conversão das instalações existentes e diversificação do sistema de locomoção através de ruas e passarelas), Demetre Anastassakis, Cláudia Mello e Antônio Carlos da Cruz (empreendimento Saúde, recuperação para a moradia de baixa renda) e Gladys Brasil (o píer transformado em ilha, intervenção impactante).
Dois anos depois, a revitalização ganhou fôlego: entraram em cena a Fundação Guggenheim e o arquiteto francês Jean Nouvel, porta-vozes da proposta de ocupação do píer Mauácom uma filial do museu nova-iorquino. O CAU e a Secretaria Municipal de Urbanismo organizaram outra exposição, também dirigida por Sandra, dessa vez sobre a obra de Nouvel. Exibida entre 11 de setembro e 9 de dezembro de 2003, a mostra teve como protagonista o projeto do porto.
Nos bastidores, contudo, não havia muito que festejar. Em entrevista concedida à RioTV Câmara, em agosto de 2009, Sirkis relembra que o empresariado da construção civil do Rio de Janeiro passou batido pelo projeto já em 2001. Em tom de revanche bem-humorada, Sirkis comentou tê-los advertido de que estavam enganados, não deviam ficar tão viciados na Barra da Tijuca.
Postal do porto do Rio em 2002 (PMRJ; Coleção O Porto do Rio: 1608 a 2002 - Um Passeio no Tempo; design de Guta sobre foto de Paulo Romeu).
As fotos aéreas mostram a grande escala do píer Mauá e da Perimetral que percorre boa parte do cais do porto
Imagens do folder da exposição Porto do Rio, de 2001, realizada pelo Centro de Arquitetura e Urbanismo, do IPP. Nela, foram reunidos oito projetos para a zona portuária, parte deles utópica
Calatrava impressionou a plateia de arquitetos e estudantes de arquitetura ao esboçar, com aquarela, o conceito de seu projeto para o Museu do Amanhã.
Santiago Calatrava
Depois da palestra, posou para uma foto com estudantes, da qual participou o filho Gabriel, que aparece no canto esquerdo do último plano da imagem
Por sua vez, a contratação do arquiteto francês pela prefeitura, sem a realização de concurso público, suscitavaprotestos e ações judiciais. E sua arquitetura, por fim, não empolgou, resume Sirkis, que atualmente é relator da Comissão Especial da Câmara Municipal que cuida do projeto de revitalização da zona portuária.
Um dos últimos sopros de alento sobre o porto foi dado em meados de 2004, com a organização de um concurso público para o tratamento ambiental e paisagístico do viaduto daPerimetral, desde a praça Mauá até a rua Barão de Teffé. Venceu a equipe dos arquitetos Ricardo Kawamoto, Elaine Kondor e Márcio Leite, cujo projeto continua sendo considerado, por Sirkis, de efeito satisfatório e custo viável (cerca de 20 milhões de reais no cenário atual).
Fôlego olímpico
Quando, em 2 de outubro de 2009, o Comitê Olímpico Internacional anunciou que o Rio de Janeiro seria a sede dos Jogos de 2016, a revitalização da zona portuária estava outra vez na pauta da prefeitura. Com novo fôlego e nome - Porto Maravilha -, o projeto fora lançado pelo prefeito Eduardo Paes em junho.
Ao plano geral desenvolvido pelo IPP na gestão de Sirkis (convidado por Paes para juntar-se à gestão do projeto), o Porto Maravilha agregou uma nova base legal de uso e ocupação do solo, mecanismos urbanísticos e financeiros de uma operação urbana consorciada, incentivos fiscais e tributários para a construção civil e para o empresariado do comércio, serviços, hotelaria, habitação e entretenimento, assim como parcerias para a recuperação do patrimôniohistórico e cultural, entre outras.
Com a entrada do economista Felipe de Faria Góes para a prefeitura em janeiro de 2009, assumindo os cargos de presidente do IPP, secretário de Desenvolvimento e membro do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico, articulouse a definição do porto como Área de Especial Interesse Urbano. Ex-sócio da empresa de consultoria estratégica McKinsey - que recentemente fez estudos sobre a infraestrutura aeroportuária brasileira -, Góes é citado pelos agentes envolvidos na revitalização como o mentor dessa nova fase do projeto.
Ele ganhou informalmente o apelido de “vendedor do Rio” e incrementou o plano com duas frentes principais: a concessão de incentivos fiscais, válidos até 2012, ano em que termina a gestão de Paes; e o planejamento da captação de recursos privados para investimento público, através da venda dos chamados Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepac). Trata-se, respectivamente, da primeira e da segunda fases previstas para a implantação do Porto Maravilha, explica Góes com didatismo. E ele está otimista: “Há recursos para avançar com velocidade, o momento é favorável”.
Sérgio Magalhães, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil/Departamento do Rio de Janeiro (IAB/RJ) eleito em 2009, foi um dos primeiros a protestar contra o desperdício do potencial de revitalização da zona portuária, excluída da carteira de projetos olímpicos de 2016. Num clima acirrado de confronto Barra x porto, a opinião pública começou a reverberar a reivindicação de que parte dos equipamentos olímpicos previstos para a Barra da Tijuca fossem transferidos para a zona portuária, embora o comitê organizador declarasse que o dossiê da candidatura não poderia ser modificado.
O prefeito carioca, reconhecendo a liderança esboçada por Magalhães na luta pró-porto, pediu ao IAB/RJ que elaborasse um estudo preliminar para a Vila da Mídia, a Vila dos Árbitrose o centro tecnológico, simulando sua implantação próximo da rodoviária Novo Rio.
Não há consenso se a transferência da Vila da Mídia, não credenciada, e da Vila dos Árbitros foi autorizada pelo COI, embora a prefeitura divulgue que tem o sinal verde do órgão. Na assessoria da Serio, por exemplo, informa-se que, por hora, a visita de Paes ao COI abriu o precedente para que os membros do comitê considerem a transferência parcial, a ser discutida na visita que farão ao Rio em setembro.
Enquanto isso, a prefeitura e o IAB estão articulando a realização de um concurso público nacional para a elaboração das instalações olímpicas na zona portuária. Sérgio Magalhães deverá encabeçar também a organização de competições para a criação, no local, das estações de BRT (os corredores exclusivos de transporte público que deverão ser implantados na cidade) e da nova sede da Câmara Municipal. “Gostaria de ver a chamada do concurso divulgada nesta reportagem”, disse Magalhães, em entrevista num restaurantede Humaitá. Mas, a considerar as informações de Felipe Góes, o lançamento deverá ocorrer, na melhor das hipóteses, no final de agosto [o Porto Olímpico terá seu edital lançado, de acordo com o IAB/RJ, dia 05 de novembro. Clique aqui e veja]. É possível que então os conselheiros do COI já estejam no Rio.
Momento de concretude
Leonel Kaz é curador do Museu do Futebol, em São Paulo. Vai exercer as mesmas funções no Museu do Amanhã (com Luis Alberto Oliveira) e no Museu de Arte do Rio, que estão sendo idealizados pela Fundação Roberto Marinho para o píer e a praça Mauá, como parte das ações do Porto Maravilha. Para ele, tanto faz se a região vai ou não entrar para a carteira de projetos olímpicos. “O momento é de concretude”, diz, sentado em uma sala no Museu do Futebol. Em sua análise, o Rio de Janeiro vive um perído de redignificação.
E a revitalização do que ele chama de o arco de 400 anos de história da praça Mauá - conjunto formado pela praça, pelo mosteiro e morro de São Bento, pelo píer e pelo edifício A Noite, o primeiro arranha-céu da América Latina, passando pela construção eclética do Palácio D. João 6º - vai acontecer independentemente do aporte de equipamentos olímpicos. Kaz, que afirma já ter manipulado cerca de meio milhão de imagens sobre a cultura e a história do Rio de Janeiro (ele também é proprietário da editora Aprazível), acredita na força do trabalho em equipe para que os novos museus transformem positivamente seu contexto.
Num sábado de fevereiro deste ano, ele foi convidado porHugo Barreto, secretário geral da Fundação Roberto Marinho, para um almoço com o prefeito Eduardo Paes. Outro convidado estava à sua espera: o arquiteto espanhol Santiago Calatrava, a postos com seu estojo de pincel e tinta aquarela, a fim de trocarem ideias sobre um museu de ciências proposto pela fundação, o Museu do Amanhã.
Reuniões já tinham sido feitas com cientistas, filósofos, psicólogos e profissionais de várias formações, considerando-se inicialmente a ocupação dos armazéns 5 e 6 do cais. Foi assim que surgiu a menção ao projeto do Museu do Amanhã no lançamento do Porto Maravilha, em 2009. Mas, como disse o prefeito em janeiro passado, os fatos haviam mudado. O Rio conquistara a sede da Olimpíada de 2016 e recebera o convite da ONU para realizar, em 2012, a Terceira Cúpula da Terra(Rio + 20), uma retomada da Eco 92. Paes decidiu, engavetar a implantação do parque idealizado para o píer Mauá por Sérgio Dias, secretário de Urbanismo, e anunciou que um arquiteto estrangeiro faria uma nova proposta para o local. Ele se referia a Calatrava.
Calmo e de olhar atento, o arquiteto não oculta sua curiosidade e se detém gentilmente na conversa, à revelia daurgência de uma agenda atribulada. Em uma manhã de junho passado, ele fez uma apresentação pública do projeto do Museu do Amanhã, durante uma hora e meia, para uma plateia de profissionais e estudantes de arquitetura que lotaram o auditório do primeiro andar do Palácio Gustavo Capanema. Falou de filosofia e de engenharia relacionadas à arquitetura, mencionou artistas plásticos, músicos e poetas, e revelou-se encantado com o painel de Cândido Portinari, que descobrira há instantes nas paredes do emblemático edifício modernista carioca. Agradeceu a encomenda desafiadora e, bem ao seu estilo, pôs-se a aquarelar esboços conceituais do museu, discorrendo sobre partido, linguagem e funcionamento.
Esse clima tranquilo e amistoso se manteve no encontro com os jornalistas, do qual participou um de seus filhos, Gabriel, que também é arquiteto. O jovem mostrou em seu iPadplantas e cortes, aparentemente de anteprojeto, enquanto o pai argumentava que de forma alguma a grande escala da edificação limitaria o passeio público pelo píer Mauá. Calatrava, que gesticula o tempo todo, está confiante no cronograma da obra. “Zero chance de não ficar pronto em 2012”, disse, empunhando a mão esquerda com os dedos unidos em círculo.
Segundo Leonel Kaz, foi árduo o trabalho de Calatrava até chegar ao ponto de revelar tamanha confiança na pertinência de seu projeto para o Rio. Desde o almoço na casa do prefeito, em fevereiro, Kaz acompanhou a movimentação intensiva do espanhol nos escritórios de Nova York e Zurique, quando demonstrou desenvoltura e resignação para desenhar a várias mãos. “Parem de acreditar em gênios”, alerta o curador.
Lúcia Basto, gerente-geral de patrimônio da Fundação Roberto Marinho, corrobora o relato de Kaz. Enérgica, ela é conhecida pela linha dura com que conduz o processo de desenvolvimento e implantação dos trabalhos sob sua responsabilidade, lançando, por exemplo, já no estudo preliminar, a fase de compatibilização dos projetos complementares e a engenharia. Numa reunião para discutir o conceito do Museu do Amanhã, conduzida por Calatrava, Lúcia solicitou a presença do secretário municipal de Obras, “para já ir vendo se lá na frente, devido às características do projeto ou à dinâmica do mercado da construção civil, teremos algumgargalo”, ela conta.
A diretora relata que uma de suas maiores dificuldades é fechar os contratos com os arquitetos, cujos honorários, no caso do Museu da Imagem e do Som (projeto de Diller Scofidio + Renfro) e dos dois museus no porto (o de Calatrava e o Museu de Arte do Rio, de Thiago Bernardes,Paulo e Bernardo Jacobsen), estão sendo pagos pela Fundação Roberto Marinho. “Principalmente os estrangeiros têm certa resistência em aceitar que o projeto vai ter que mudar, tanto quanto necessário, até que funcione bem em sistema”, revela.
Hugo Barreto foi uma das figuras elogiadas por Lúcia, em sua sala no bairro do Rio Comprido, na zona oeste do Rio. Barreto é filósofo de formação, mas acredita que teria sido um bom arquiteto. Ele se disse impressionado com o projeto de Bernardes e Jacobsen para a sede do MIS, apresentado em meados de 2009, em concurso fechado. “Desde então queremos trabalhar com eles. O desenho do MIS era muito forte, impactante”, ele se entusiasma. No caso do Museu de Arte do Rio, o cronograma é apertado, as entregas e decisões são semanais, o projeto foi surgindo com os embates das reuniões. Do partido inicial silencioso, como define Thiago, evoluiu-se para o desenho icônico de uma cobertura onduladaque explicita, em altura, a junção dos dois edifícios a serem incorporados pelo museu. Calatrava e os arquitetos cariocas implantarão seus projetos na mesma área de influência, a praça Mauá, mas ainda não se conhecem. Sabem remotamente um do projeto do outro.
via arcoweb
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